Sem preconceito
Todo mundo já ouviu dizer - geralmente pela próprias mães - que o dia delas é todo dia e que a data marcada é só um apelo comercial. Mas é o mesmo argumento que Lucinha Araújo, mãe do cantor Cazuza, usa para dizer que o Dia Mundial de Luta contra a aids não deve ser apenas uma data comemorativa. Até porque, pelo que analisa, "esse ano a coisa tá muito morna". A mídia, segundo ela, não deu a atenção que deveria para a data.
Autora de Só as Mães são felizes, o livro em que conta a sua relação com o filho famoso, ela não ficou na inércia quando o drama acabou - da pior maneira, há 16 anos. Fundou a Sociedade Viva Cazuza, um projeto que atende crianças e adultos carentes portadores do HIV.
Lucinha acha que desde que o filho descobriu a doença até os dias atuais, muita coisa mudou. Desde o avanço no tratamento, até a forma de a sociedade lidar com a doença. "Porque agora a aids tá batendo na porta de quem nunca pensou que fosse bater", diz ela. Mesmo assim, sabe que o preconceito jamais terá fim. "Vai existir enquanto existir gente ignorante. E como gente ignorante vai existir sempre, eu acho que vai continuar tendo preconceito", afirma.
Nesta entrevista exclusiva a Terra Magazine, Lucinha conta histórias de discriminação que o filho sofreu - mas que ela escondia dele -, como o caso da vizinha que pedia aos porteiros que Cazuza fosse proibido de pegar o elevador.
Leia a íntegra:
Terra Magazine - O que significa para a senhora o dia de hoje, em que o mundo inteiro volta os olhos para a luta contra a doença que vitimou seu filho?
Lucinha Araújo - Eu acho que o Dia Mundial de Combate à aids deveria ser todo dia. Tudo bem que tem um dia comemorativo, mas é como o Dia das Mães... Dia das Mães é todo dia. Não é o dia que marcaram pra ser, comercialmente. E estou achando que esse ano a coisa tá muito morna. Hoje eu li os jornais e não tinha um jornal que falasse sobre isso. Teve um, acho que foi O Dia, que falou alguma coisa. Então eu estou achando que esse ano tá muito morno, eu fico até com medo.
Medo por quê?
Porque quanto menos você fala, mais as pessoas esquecem. E quanto mais elas esquecem, mas elas se contaminam. E a gente fica pensando que a epidemia deu uma baixada, mas não deu, infelizmente. Porque as pessoas, a juventude hoje em dia esquece... Como a aids mudou de cara, hoje você não fica mais desfigurado como ficava antigamente, as meninas não exigem dos meninos que usem camisinha e vice-versa, entendeu?
Ainda existe preconceito em relação aos portadores do vírus da aids no país?
Eu acho que vai existir preconceito enquanto existir gente ignorante. E como gente ignorante vai existir sempre, eu acho que vai continuar tendo preconceito. Mas eu acho que melhorou um pouco. Porque agora a aids tá batendo na porta de quem nunca pensou que fosse bater. Pelo menos lá com as minhas crianças, (o preconceito) diminuiu muito.
E daquele tempo em que a Sociedade Viva Cazuza foi fundada até hoje, mudou a forma com que a sociedade encara a aids?
Ah, completamente. Pelo menos em relação à Sociedade Viva Cazuza. O Cazuza não sofreu preconceito porque era uma pessoa famosa e não era ator. Talvez se ele fosse ator, tinha sofrido preconceito, mas como ele era cantor, eu achei que foi diferente.
Mas por que essa diferença?
Porque o ator tem que contracenar. E quando você sabe que o ator tem aids, você tem medo de beijar na boca... e as pessoas são ignorantes. E o Cazuza era diferente, o Cazuza era cantor, então não tinha esse tipo de coisa. Ele não sofreu preconceito que ele soubesse. O que acontecia, eu não deixava ele saber. Eu sabia geralmente antes e eu não deixava ele saber. Mas teve, por exemplo, o dentista que tratava dele desde criança e não quis atendê-lo... Mas ele não soube.
A senhora não contava essas coisas pra ele?
Não, pra que eu ia fazer ele sofrer mais?
E que tipo de coisa mais?
Por exemplo, aqui no prédio. É uma história que eu conto com detalhes no livro (Só as mães são felizes). Aqui no prédio tinha uma mulher que se juntou com o faxineiro para pedir dinheiro ao João (Araújo, pai do Cazuza) porque ele disse que tinha se espetado com uma agulha contaminada. E eu sou uma mulher previdente, eu não ia jogar uma agulha contaminada dentro da lixeira. Eu tinha um lugar separado para guardar tudo dele. Então o cara foi pedir dinheiro para o João, que disse 'tá bem, eu vou mandar fazer o exame, esperar o resultado, se você estiver contaminado, tudo bem'. E era tudo mentira, depois a gente foi descobrir que era uma moradora aqui do prédio, preconceituosa, que fez isso. E eu fiquei com ódio. Aí, um mês depois que o Cazuza morreu, eu falei com ela: 'olha, o dia que eu te encontrar, eu vou te dar uma surra; é a única coisa que vai me deixar feliz, eu não vou desejar mal pra tua filha... mas no dia que eu te encontrar, eu vou te bater'. E não deu outra coisa. Um mês depois eu encontrei com ela na porta aqui do prédio e enchi ela de porrada. Olha, eu lavei minha alma. Sei que não adiantou nada, mas ela aprendeu.
Mesmo sendo com o Cazuza, uma pessoa famosa...?
Mesmo sendo. Ela chegava a dizer aos porteiros que não deviam deixar ele usar o elevador. Mas isso era uma mulher maluca, isso não foi a maioria. Foi uma doida, mas eu enchi ela de bolacha.
E depois a senhora nunca mais encontrou com ela?
Ela foi embora para Portugal, era portuguesa. Ficou pobre. E eu falei que a única coisa que desejava para ela era que ficasse pobre. Porque eu não ia desejar doença para a filha dela. Mas uma pessoa que se junta com o faxineiro para tirar dinheiro dos outros num momento desses não merece ter dinheiro. Foi uma praga, porque ela se mudou aqui do prédio pobre e foi embora para Portugal. Foi uma delícia, eu adorei.
Você acha que se o Cazuza estivesse vivo e tivesse descoberto a doença nos dias de hoje, alguma coisa teria sido diferente? Porque os tratamentos avançaram muito...
Ah, com toda certeza. Eu conheço gente que tá doente desde antes do Cazuza e tá aí. Agora o fator sorte também contribui muito. O vírus, em cada pessoa, ataca de um jeito diferente. As minhas crianças, por exemplo. Hoje em dia eu tenho 20 morando lá comigo. Uns nunca tiveram absolutamente nada, nada da doença. E outros têm a saúde mais frágil, porque o vírus é mais forte nesses. Então eu acredito que o Cazuza também não deu muita sorte. Porque tratamento ele teve todos os possíveis na época. Naquela época só tinha um retroviral, hoje já tem 17 tipos diferentes...
Você completou 70 anos esse ano e 16 da Sociedade, trabalha com crianças - e crianças muito especiais. Como é esse sentimento para você?
É um sentimento tão bom, tão digno. Eu me sinto tão bem, que eu sou mais beneficiada às vezes do que eles. Se eu não tivesse feito isso, ou eu ia para um analista e ia acabar no hospício... Imagina você perder no auge da fama, da beleza, ganhando o dinheiro dele, seu único filho. Para uma doença dessa. Era para eu não querer, aliás, nunca mais falar dessa doença. Mas eu não consegui. Eu não entendi porque quando você é maltratado por uma doença dessa, principalmente do jeito que nossa família foi, você nunca mais deixa de se envolver com a aids. É uma coisa que atinge familiares, amigos, a quem tá do seu lado... então eu não podia ser diferente. E não me arrependo. Acho que foi muito bom e que a minha vida tomou outro destino.
A Sociedade se sustenta com os direitos autorais do Cazuza...
É, basicamente. Não que dê para cobrir as despesas, porque elas são muitas. E o resto, a gente faz shows beneficentes, leilões, alguma ajuda governamental, e nesse governo diminuiu muito. E a gente vai matando um leão a cada dia.
Quais são os projetos desenvolvidos?
Tem a Casa de Apoio Pediátrico, que oferece abrigo em sistema de internato para 20 crianças carentes. Outro com pacientes adultos - um projeto de incentivo ao uso dos medicamentos. Porque eles recebem os medicamentos nos postos, e como não sabem ler, não sabem escrever, não têm um acompanhamento, eles não tomavam os medicamentos. Então nós criamos um projeto que, às quartas-feiras, os 150 pacientes adultos que atendemos vão lá, a gente risca as cartelas, colore as cartelas, para eles aprenderem que 'o azul você toma em jejum, o vermelho a tal hora da noite'. A gente procura ajudar, eles provam que estão se tratando, mostram a receita da próxima ida ao médico e então, de prêmio, a gente dá uma cesta básica, que é o chamariz. E o terceiro é via internet, com o site informativo (NR: www.vivacazuza.org.br), elucidativo, sobre aids, que nós temos dez médicos respondendo, especialistas. A gente responde uma média de 4.000 perguntas mensais.
Não apenas em relação às ações governamentais, mas pelo que o terceiro setor tem feito, a senhora vê com otimismo ou pessimismo as políticas de combate à aids? A senhora acha que vai melhorar a curto prazo?
Olha, eu não acho, não. Não adianta você fazer uma campanha às vésperas do Carnaval, no Dia Mundial de Combate à aids. Isso não leva a nada. Tem que ser uma coisa de dia-a-dia, um corpo-a-corpo.
Mas não está havendo uma campanha permanente?
Não, não tá. As campanhas, pelo menos as da televisão, da mídia, elas não têm uma solução de continuidade. Como não tinham há 16 anos, quando Cazuza era vivo.
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